segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Bilinguismo passivo – Quando a criança se recusa a falar português


Um bilíngue passivo é uma pessoa que teve exposição suficiente a uma segunda língua para compreendê-la bem, mas que exerce pouco ou nenhum comando ativo do idioma, ou seja, além de falar sua primeira língua, entende uma segunda língua, mas não fala.

No caso de filhos de brasieliros residentes no exterior, bilinguismo passivo infantil normalmente ocorre quando a criança passa a responder na língua do país de residência quando alguém se dirige a ela em português, frustrando muitos pais. É mais comum do que se imagina.

A inabilidade de se comunicar em português pode ser causada por falta de vocabulário, o que impede a criança de responder adequadamente, ou falta de interesse pela língua. Quando uma criança aprende português em casa com o pai ou a mãe, e o adulto não é coerente no uso do idioma, falando com a criança às vezes na língua do país de residência e outras vezes em português, a tendência é que a criança desenvolva o bilinguismo passivo. Estudos demonstram que crianças têm maior facilidade para aprender várias línguas em ambientes em que há coerência no uso dos idiomas - elas adoram previsibilidade e segurança.


Algumas vezes a criança tem capacidade de falar a língua, mas se recusa a fazê-lo por razões variadas, e com o tempo acaba perdendo essa capacidade. Uma fase crítica, em que muitas crianças que falam português deixam de fazê-lo, é a época em que elas entram na escola, passam a ter contato constante com a língua do país de residência e o português é usado cada vez menos. Outra fase crítica é a adolescência, quando a criança pode passar a achar que falar português a torna diferente dos outros à sua volta. Em alguns casos o adolescente rejeita o português e não quer nem mesmo que os pais falem com ele nesse idioma. Apesar de essas serem fases críticas, uma criança pode parar de falar o português em qualquer época.

Este é um problema que nunca tive com minha filha, mas que ocorreu com muitas das famílias de brasileiros que conheço aqui na Inglaterra e em outros países. Na maioria dos casos os pais infelizmente passaram a falar inglês com os filhos.

No entanto, os pais não devem desistir de continuar a falar português com a criança quando ela passa a responder em outra língua.  Bilinguismo passivo é um pouco subestimado pelos pais, mas não deveria ser. Quando um bilíngue passivo se encontra numa situação em que tem necessidade de falar a língua em questão, como por exemplo se se muda para um país onde a língua é falada, algumas vezes passa a falar ativamente o idioma sem muito problema. Por essa razão, é importante continuar expondo a criança à língua, mesmo quando seu conhecimento é apenas passivo. Continue falando português com seu filho. Ser um bilíngue passivo é melhor do que ser monolíngue. Quando você deixa de falar português com seu filho porque ele responde em outra língua, a tendência é que ele passe a entender cada vez menos o português, por não ter mais contato constante com o idioma, e acabe se tornando monolíngue.

Na prática 1
Uma mãe francesa casada com um inglês e residente na Inglaterra conta que apesar de ela desde o nascimento de seu filho ter se comunicado com ele em francês, quando o menino começou a falar ... ele falava apenas inglês! Ela esperou até ele fazer 3 anos e meio, e nada. O menino obviamente entendia francês perfeitamente, mas falava apenas inglês. Ela tinha certeza que o problema era o fato de ele saber que ela entendia inglês bem, pois ela e o marido se comunicavam em inglês. Então essa mãe resolveu explicar ao filho com muito carinho, mas muito claramente, que a língua dela era o francês; ele ia ter que falar francês com ela dali para a frente. Inicialmente o menino falava devagar e parava a toda hora porque não sabia a palavra que queria dizer em francês. A mãe então perguntava: “qual é a palavra em inglês?”, ele dizia e ela traduzia para o francês. Aos poucos o francês dele foi melhorando. Segundo essa mãe, o menino deve ter percebido que ela estava falando sério e que não ia mudar de idéia, porque a estratégia funcionou.

Na prática 2
Um outro caso interessante, mas com resolução ainda pendente, envolve uma família em que o pai e a mãe são brasileiros. O filho deles nasceu no Brasil. Quando ele tinha 6 anos a família se mudou para a Inglaterra. O menino não falava inglês quando veio para cá e aprendeu a língua na escola. Atualmente ele tem 11 anos e além de se recusar terminantemente a falar português, não gosta que o pai e a mãe falem português com ele. A esperança dos pais é que essa seja uma fase passageira.

Na prática 3
O caso de uma outra família residente na Inglaterra infelizmente parece ser bastante comum aqui nas terras da rainha. A mãe é brasileira e o pai inglês. A filha nasceu e foi educada na Inglaterra. A mãe, que tem muito orgulho do fato de ter aprendido inglês na prática (por imersão) após se casar e se mudar para a Inglaterra, sempre misturou inglês e português na comunicação com a filha e nunca valorizou a língua portuguesa – ela até adicionou um certo ‘sotaque inglês’ ao seu português, que é invariavelmente salpicado de palavras e expressões em inglês. Na infância a filha falava um pouquinho de português, mas nunca chegou a ser fluente. Quando a família passava uma temporada no Brasil ela voltava com um vocabulário um pouco maior, mas sempre teve um sotaque forte e sempre preferiu falar inglês. Hoje a menina está com 14 anos e não fala mais português. A mãe infelizmente passou a se comunicar com ela predominantemente em inglês e o seu entendimento do português decaiu tanto devido à falta de contato com a língua que a menina se tornou praticamente monolíngue.

Dicas
Abaixo, algumas sugestões do que fazer se seu filho se recusar a falar português:

-      Por mais que isso seja frustrante para os pais, a decisão da criança de falar apenas uma língua deve ser respeitada. Os pais podem tentar persuadi-la a falar português, preferencialmente de maneira sutil, mas não podem nem devem forçá-la. Especialmente no caso de adolescentes, forçá-los a falar português pode ter um efeito totalmente contrário do desejado.

-      Tenha paciência. Mesmo sendo um bilíngue passivo, seu filho pode continuar desenvolvendo o seu português.

-      Tente melhorar a sua comunicação com a criança de uma maneira geral. Aprenda a ouví-la, aproxime-se dela. A recusa do seu filho de falar português pode ser um reflexo de alguma insatisfação com o relacionamento de vocês dois.

-      Continue falando apenas português com seu filho e sendo consistente no uso da língua. Procure não falar com a criança às vezes numa língua e às vezes em outra. Ela não pode ter dúvida de que com você a língua é português. Lembre-se: a criança só vai valorizar a língua portuguesa se você a valorizar primeiro. Seja um bom exemplo para seu filho.

-      Seja realista e considere se seu filho teve exposição suficiente à língua portuguesa para falá-la. Talvez ele precise de ajuda para adquirir mais vocabulário. Certifique-se de que seu filho tem acesso a material de apoio adequado para aprendizagem do idioma, como bons livros em português, bons filmes e séries brasileiras, etc. Na maioria das vezes bilinguismo passivo é resultado de um ambiente lingusticamente pobre.

-      Demonstre satisfação com qualquer sinal de melhora do português do seu filho, especialmente o uso ativo da língua.  

-      Leia o post ‘Crianças bilíngues e o valor das línguas com atenção. Esse post contém sugestões e idéias para incentivar seu filho a falar português que podem ser de extrema valia nessa fase. Dos exemplos mencionados no artigo, a estratégia mais eficaz uma vez que a criança já parou de falar português talvez seja viajar para o Brasil com frequência. No entanto, essa estratégia por si só corre o risco de surtir efeitos apenas temporários, e o ideal é que seja combinada com outras que façam da língua portuguesa uma parte relevante do dia a dia da criança no país de residência. Por exemplo, se seu filho quer aprender a tocar violão, por que não contratar um professor brasileiro, com instruções para se comunicar com o aluno apenas em português? Use a imaginação!

Uma boa notícia

A boa notícia para os pais é que se a criança tinha bom domínio ativo da língua antes de parar de falá-la, a rejeição pode ser temporária, especialmente se ocorre na adolescência. O crescimento emocional da criança e o aumento do seu entendimento intelectual podem causar uma mudança de atitude com relação ao português e uma progressiva valorização da língua. O que era uma irritação para o adolescente pode se tornar uma tábua de salvação para o jovem adulto num mercado de trabalho em que o multilinguismo é cada vez mais valorizado. Daí a importância de os pais manterem vivo o bilinguismo, mesmo que passivo, continuando a falar com a criança apenas em português.

Nas palavras de Colin Baker, um dos mais renomados autores de livros sobre bilinguismo infantil, em tempos de desespero linguístico os pais precisam ter fé, esperança e amor. Tudo o que eles podem fazer é proporcionar as condições necessárias para o individuo decidir por si só o futuro da sua existência linguística. O jardineiro pode preparar o solo, plantar as sementes, oferecer um ambiente propício para o crescimento. Os pais, como o jardineiro, não podem forçar o crescimento, mudar a cor ou controlar o desabrochar da flor que é a linguagem dos seus filhos.


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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Bilinguismo e atraso no desenvolvimento da fala

Recentemente conheci uma brasileira residente aqui na Inglaterra que tem um filho de três anos com quem ela fala somente em inglês. Quando lhe perguntei por que não falava português com a criança sua resposta foi: “Porque ele estava ‘travado’, não falava, então a professora do jardim nos recomendou que falássemos somente inglês com ele em casa.”

Essa brasileira não é um caso isolado. Muitos pais acreditam que crianças expostas a duas ou mais línguas tendem a ter um atraso no desenvolvimento da linguagem e ao menor sinal de lentidão ficam inseguros quanto a continuar ou não proporcionando uma educação bilíngue aos filhos.




 
Além disso, quando crianças que estão crescendo num ambiente bilíngue demonstram algum tipo de atraso ou distúrbio da fala, professores e até mesmo profissionais de saúde muitas vezes assumem que o problema é causado pelo bilinguismo e recomendam que a família passe a falar com a criança apenas na língua do país de residência.

Mas afinal, bilinguismo causa ou não atraso no desenvolvimento da fala?

Pesquisas
Pesquisas recentes são unânimes em concluir que crianças bilíngues começam a falar na mesma época que as monolíngues. Algumas crianças podem fugir um pouco da média, começando a falar um pouco antes ou um pouco depois das demais, independentemente do número de línguas a que estão expostas. Em suma, bilinguismo não causa atraso no desenvolvimento da fala nem protege contra atraso – simplesmente parece não fazer nenhuma diferença nesse sentido.  

Isso quer dizer que crianças bilíngues podem ter exatamente os mesmos distúrbios da fala que as monolíngues, portanto qualquer atraso significativo não deve ser tomado como normal em consequência do ambiente bilíngue – ele provavelmente é causado por algum outro fator e deve ser investigado. É muito importante que distúrbios sejam diagnosticados cedo, pois isso facilita muito a resolução dos problemas. 

E se algum profissional sugerir que você pare de falar sua língua materna com seu filho, não tenha medo de questionar a recomendação. Pergunte o por quê da medida, sua base científica (existe alguma evidência científica de que o monolinguismo vai ter um impacto positivo no tratamento do seu filho?) e, se necessário, procure uma segunda opinião, de preferência de um profissional que tenha experiência em bilinguismo. Na grande maioria dos casos a conversão ao monolinguismo não vai ter impacto no ritmo de desenvolvimento da linguagem, e em certas situações pode até gerar problemas emocionais.

Quando procurar ajuda
Como menciono acima, bilinguismo em si não causa atraso na fala, mas outros fatores podem causar, e quanto mais cedo um diagnóstico é feito, melhores são as perspectivas de solução do problema. Mas quando os pais devem procurar um especialista? O que exatamente constitui um ‘atraso’ no desenvolvimento da fala? Até que ponto uma demora no desenvolvimento da fala pode ser considerada normal?

Durante a aquisição da linguagem as crianças passam por fases distintas, que ocorrem dentro de períodos padrão. Segundo a equipe de fonoaudiologia da Clínica do Parque, de São Paulo, a aquisição da linguagem normalmente ocorre no seguinte ritmo:

De 0 a 6 meses a criança:
  • Produz ruídos, gritos e choro
  • Brinca com os barulhos que produz
  • Emite sons nos momentos em que está acordada e tranquila (por exemplo “aaa”, “uuu”)
  • Imita a entonação do adulto (jogo vocal)
De 6 a 12 meses:
  • Aumenta a quantidade de sons produzidos
  • Surge o balbucio: “baba”, “ma-ma-ma”
  • Torna-se possível uma espécie de diálogo
  • Atende pedidos simples, como mandar beijo, bater palminhas, dizer tchau.
De 1 a 2 anos:
  • Sabe dizer o próprio nome
  • Fase do grande “boom” da linguagem, início das primeiras palavras
  • Diz frases do tipo “nenê dormir”
  • Ao final dessa fase já é capaz de construir frases como “quero água”, “quero comer”
De 2 a 3 anos:
  • Uso de gestos acompanhados de fala (aponta e diz: “que é isto?”)
  • Diz frases simples como  “a bola caiu”
  • Começa a fase do “por que”, que exige grande paciência dos pais
  • Compreende histórias e atende ordens mais complexas, como feche a porta e apague a luz
  • Surgem as noções temporais (agora/depois, primeiro/último) e de quantidade (um/mais de um)
De 3 a 4 anos:
  • A criança já adquiriu a maioria dos sons, sendo capaz de produzi-los corretamente
  • É capaz de organizar o que fala e sequencializar fatos (com início, meio e fim)
  • Já faz uso de pronomes (eu, você, meu), preposições (de, por, para), plural e passado

Embora existam esses padrões, características individuais da criança e estímulos externos podem influenciar muito o ritmo de desenvolvimento da fala.  Há grandes variações. Uma autora conta que sua filha, educada em três idiomas, falava três palavras aos dois anos de idade: duas numa língua e uma em outra. Hoje a menina tem 21 anos e fala fluentemente os três idiomas. Nossa filha, por outro lado, igualmente educada em três idiomas, já falava uma dezena de palavras no seu primeiro aniversário.

As primeiras palavras geralmente são ditas pelo bebê entre os 9 meses e os três anos de idade – um período muito extenso, mas tanto a criança que diz a primeira palavra aos 9 meses quanto aquela que só começa a falar aos três anos pode estar dentro da normalidade. Algumas mães vão ficar aliviadas em saber que Albert Einstein só começou a falar aos três anos de idade – seus pais até o levaram a um especialista para investigar o problema.

No entanto, os pais devem seguir seus instintos e procurar ajuda médica tão logo desconfiem que a criança possa ter um problema. Alguns especialistas recomendam que se a criança não fala nenhuma palavra aos 18 meses, ou se os pais  não conseguem entender o que ela diz, o problema deve ser discutido com o pediatra, que poderá fazer uma avaliação individualizada, de acordo com as características específicas da criança.  Especialistas também dizem que se aos três anos a criança ainda come consoantes ou substitui um som ou uma sílaba por outra, os pais devem considerar uma avaliação fonoaudiológica.

O fato é que apenas contar o número de palavras que uma criança fala não é suficiente para determinar se o seu desenvolvimento está sendo normal. Ela pode não falar muito, mas se entende o que é dito a ela, o sinal é positivo. No entanto, se a criança não reage a estímulos verbais e parece não entender linguagem, o problema deve ser investigado o mais cedo possível.

O atraso da fala pode ter origem funcional, quando não há nenhum problema físico e a demora se deve à imaturidade da criança, ou orgânica, quando a causa está em algum problema fisiológico ou psicológico. As causas mais comuns de atraso no desenvolvimento linguístico são as seguintes.

Problemas de audição
É muito comum que atrasos no desenvolvimento da fala sejam consequência de problemas auditivos – a criança precisa ouvir para poder repetir os sons e associá-los aos objetos.  A audição da criança geralmente é testada no hospital logo após o nascimento, mas problemas podem aparecer mais tarde. A simples observação da criança vai dar pistas quanto a possíveis problemas: ela reage a barulhos altos, olha na sua direção quando você fala com ela? Bebês com problemas de audição podem parar de balbuciar por volta dos seis meses. Se os pais suspeitarem que há um problema auditivo, podem submeter a criança a exames que captam perdas de audição progressivas ou adquiridas. Quanto mais cedo melhor.

Problemas no desenvolvimento em geral
Descartada a possibilidade de uma deficiência auditiva, deve-se considerar o desenvolvimento da criança em outras áreas, pois o atraso da fala pode ser consequência de um atraso mais amplo no desenvolvimento. Por exemplo, a criança entende quando você fala com ela, tem habilidades visuais, segue comandos simples, tem boa coordenação motora? Aqui também, a criança pode ser submetida a testes específicos para determinar se o desenvolvimento como um todo está normal.

Transtornos neurológicos
Problemas da fala podem ser indício de transtornos neurológicos, incluindo as várias formas de autismo. Nem todas as crianças com problemas neurológicos apresentam atraso no desenvolvimento da fala, mas o atraso pode ser um sintoma precoce de algum problema nessa área.


Problemas no desenvolvimento emocional ou social
Um lar caótico ou em que os pais são muito exigentes, a falta de interação entre o adulto e a criança e muitos outros fatores podem causar problemas emocionais e sociais que também podem afetar o ritmo do desenvolvimento da fala. A família pode precisar da ajuda de um psicólogo para superar o problema.

Falta de estímulo
O desenvolvimento da linguagem exige estímulo. Se a criança não apresenta problemas de audição e do desenvolvimento em geral, os pais devem considerar se ela tem tido os estímulos necessários para falar. Para estimular as crianças é importante falar com elas desde cedo, usar um vocabulário rico, ler, cantar, brincar. Deve-se também dar oportunidades para a criança falar. Um especialista pode dar orientações específicas para os pais sobre como estimular a criança de maneira a facilitar o desenvolvimento linguístico e superar problemas causados pela falta de estímulo anterior.

Conclusão
  • Pesquisas confirmam que crianças bilíngues não demoram mais para começar a falar do que crianças monolíngues.
  • Crianças bilíngues se desenvolvem em ritmos diferentes, da mesma forma que as monolíngues, ou seja, algumas vão falar cedo, outras vão falar mais tarde.
  • Uma criança bilíngue com problemas de desenvolvimeno da linguagem deve ser tratada exatamente da mesma maneira que uma monolíngue.
  • O número de línguas a que uma criança está exposta normalmente não influencia o desenvolvimento da fala, portanto, se um professor ou ‘especialista’ recomendar que você deixe de expor seu filho a mais de um idioma, questione e procure uma segunda opinião, preferencialmente de um profissional com experiência em bilinguismo.  


Onde obter mais informação e ajuda

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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Diga-me como falas e te direi quem és – Linguagem e estereótipos sociais na Inglaterra


Na Inglaterra alguns pais têm razões adicionais para monitorar o desenvolvimento linguístico de seus filhos, especialmente no que diz respeito a pronúncia e escolha de vocabulário. Aqui, a maneira como um indivíduo fala inglês pode ter repercussão na sua vida social e profissional. Parafraseando Shakespeare, mais mistérios nos mecanismos de funcionamento da sociedade inglesa do que supõe a nossa vã filosofia de vida brasileira.


No seu livro Accents of English 1. An Introduction, o professor J.C. Wells, da University College London, nota que na Grã-Bretanha as pessoas inconscientemente tiram conclusões quanto à classe social de um indivíduo com base em seu vocabulário e sua pronúncia. O fator linguagem tem um papel predominante, e sotaques regionais são considerados característicos de classes sociais mais baixas.

Uma pesquisa mencionada no livro de J.C. Wells ilustra as associações feitas à linguagem. A seguinte pergunta foi feita a membros do público: Quais destes [11 fatores específicos] é o mais importante para identificar a classe social de um indivíduo? O fator mais votado foi ‘A maneira como ele fala’ seguido de ‘Onde ele mora’. O fator menos votado foi ‘A quantidade de dinheiro que ele tem’. A grande maioria dos participantes da pesquisa via a linguagem como um melhor indicador de classe social do que a profissão, a educação ou a renda.

Received pronunciation
A forma de pronúncia de maior prestígio na Inglaterra é a chamada Received Pronunciation (RP), ou pronúncia recebida (conhecida no Brasil como ‘inglês da rainha’), que surgiu originalmente nas escolas secundárias e universidades de elite, como Eton, Harrow, Oxford e Cambridge, nos séculos 18 e 19, e indicava que o interlocutor tinha tido uma boa educação. Received Pronunciation ganhou prominência de 1920 em diante devido a uma decisão do BBC Advisory Committee on Spoken English de que ela deveria se tornar a pronúncia padrão de apresentadores da BBC, o que foi o caso por mais de 50 anos.

Received Pronunciation acabou se tornando um símbolo de status social, boa educação e um modelo a ser seguido por pessoas com ambições de ascensão social. A pronúncia pode ser encontrada em qualquer parte do país - sotaques regionais normalmente indicam de que lugar uma pessoa vem, mas RP indica o nível social e cultural do indivíduo! RP não é um sotaque e sim a ausência de sotaques regionais, representando, segundo alguns, a forma ‘correta’ de falar inglês.

Durante as últimas décadas houve uma certa democratização dos sotaques regionais e a posição de prestígio do RP diminuiu um pouco, mas a obsessão dos ingleses por classe social e linguagem continua. Received Pronunciation ainda é o padrão da família real inglesa, do Parlamento, da Igreja da Inglaterra, das cortes de justiça e outras instituições nacionais. No entanto, segundo algumas fontes, menos de 3% da população usa uma forma pura de RP. Muitas pessoas com bom nível de educação desenvolveram o chamado RP modificado, que incorpora várias características regionais. Mesmo assim, RP, que é a pronúncia ensinada para estrangeiros que aprendem inglês britânico, continua tendo altíssimo status.  

Linguagem e classe social
Até hoje a estrutura social do Reino Unido é baseada na noção de classes sociais, em geral ligadas a berço, profissão, riqueza e educação. A percepção geral é que o vocabulário, a pronúncia e o estilo de escrita de um indivíduo são indicadores confiáveis de sua classe social.

Em geral, divide-se a sociedade inglesa em 3 classes: upper, middle (subdividida em upper, middle e lower), e working class. Abaixo, um sumário dos estereótipos linguístico relacionados a cada classe.

A pronúncia da chamada upper class é o RP. Num artigo publicado nos anos 50, Alan Ross, professor de linguística da Universidade de Birmingham, cunhou os termos ‘U English’ e ‘non-U English’ (U de upper class), algo como inglês aristocrático e inglês não aristocrático. Apesar do artigo tratar também de pronúncia e estilo de escrita, foi a diferença de vocabulário que chamou a atenção do público:


U English                                                       Non-U English

BIKE ou BICYCLE                                   CYCLE
DINNER JACKET                                     DRESS SUIT
TO HAVE ONE’S BATH                             TO TAKE A BATH
ICE                                                     ICE CREAM
SCENT                                                 PERFUME
THEY'VE A VERY NICE HOUSE                   THEY’VE A LOVELY HOME
ILL                                                      SICK (doente)
SICK                                                    ILL (enjoado)
LOOKING-GLASS                                    MIRROR
CHIMNEYPIECE                                      FIREPLACE
GRAVEYARD                                          CEMETERY
SPECTACLES                                         GLASSES
FALSE TEETH                                        DENTURES
TO DIE                                                TO PASS ON
MAD                                                    MENTAL
JAM                                                    PRESERVE
NAPKIN                                                SERVIETTE  (talvez a palavra mais conhecida como indicadora de classe da língua inglesa)
SOFA                                                  SETTEE ou COUCH
LAVATORY ou LOO                                 TOILET
RICH                                                   WEALTHY
SORRY?                                               PARDON?
GOOD HEALTH                                       CHEERS
LUNCH                                                 DINNER (para almoço)
Os falantes de U English comem lunch no meio do dia (luncheon é U antigo) e dinner à noite; falantes de Non-U comem dinner no meio do dia. Evening meal é non-U.
VEGETABLES                                         GREENS
PUDDING                                              SWEET
DRAWING-ROOM                                    LOUNGE
WRITING-PAPER                                    NOTE-PAPER
HOW D'YOU DO?                                    PLEASED TO MEET YOU
MASTER, MISTRESS                               TEACHER

Abaixo da upper class estão as ‘middle classes’. A pronúncia da upper middle class também é o RP. Um degrau abaixo está a middle middle class, cujos membros podem ter leves sotaques regionais, RP ou uma mistura. A seguir vem a lower middle class, composta predominantemente de pessoas com sotaques regionais não muito acentuados, mas com vocabulário característico.

Finalmente, os membros da working class falam com sotaques regionais acentuados e vocabulário característico.


Discriminação
A história contada a seguir pode parecer inacreditável para brasileiros, totalmente alheios a este tipo de discriminação. Há dois anos um amigo meu (que não é inglês) estava selecionando uma secretária para trabalhar para ele no escritório de uma multinacional em Londres. Ele convidou uma das candidatas, que parecia ser super bem qualificada para o cargo, para uma entrevista, da qual também participaria a gerente de recursos humanos da empresa, uma inglesa da gema. Após a entrevista, que meu amigo achou que tinha ido muito bem, a gerente de recursos humanos veio lhe dizer que ela via um seríssimo problema na candidata: ela tinha sotaque de uma certa região da Inglaterra, e se meu amigo a contratasse iria provavelmete haver uma repercussão negativa para ele pessoalmente e para a empresa! Para sorte da candidata, meu amigo não tinha o mesmo tipo de preconceito, e a contratou.

Escola como rótulo
Uma outra coisa curiosa é que na Inglaterra a escola onde a pessoa estudou muitas vezes é mais importante que o grau obtido, pois, juntamente com a linguagem, é um indicador confiável de classe social. Portanto, há também uma tendência de se rotular uma pessoa de acordo com a escola frequentada por ela (principalmente a secundária), onde, entre outras coisas, sem dúvida muitos de seus hábitos linguísticos foram formados.

De RP para cockney num piscar de olhos
O caso da filha de uma amiga brasileira que mora na Inglaterra é muito interessante dentro deste contexto. A menina aprendeu inglês na escola, pois em casa a família fala apenas português. Nos primeiros três anos ela frequentou uma escola particular num subúrbio de Londres, onde aprendeu a falar um inglês muito próximo de Received Pronunciation. No entanto, ao final do terceiro ano minha amiga resolveu colocar a filha numa escola pública, no mesmo subúrbio, mas que era frequentada principalmente por crianças de famílias ‘lower middle class’ e ‘working class’.

A rapidez com que a pronúncia da menina mudou a partir do momento que ela entrou na nova escola foi algo impressionante. Ela passou a falar com um sotaque característico da região leste/sudeste de Londres, conhecido como cockney, que tem baixo status social.  Ela começou a internalizar o som ‘t’ intervocálico, deixou de pronunciar o ‘h’ no início de palavras e começou a pronunciar ‘th’ como se fosse ‘f’ ou ‘v’. Abaixo alguns exemplos:
Waterloo = Wa’erloo 
City = Ci’y 
A drink of water = A drin'a wa'er 
A little bit of bread with a bit of butter on it = A li'le bi' of brea wiv a bi' of bu'er on i'
house = ‘ouse
hammer = ‘ammer
thin = fin 
brother = bruvver 
three = free 
bath = barf 

Desaprendendo a falar o inglês da rainha
Um outro fato interessante é que muitos estrangeiros desavisados chegam na Inglaterra falando um inglês se não fluente, pelo menos baseado em RP, e ao terem contato com pessoas que usam uma forma de linguagem de menor prestígio (que os estrangeiros não identificam como tal), assumem que a mesma é a ‘verdadeira’ língua inglesa, acabam adotando um vocabulário e uma pronúncia de baixo status social, que os sujeitam a discriminação conforme explicado acima. A substituição de palavras associadas a uma linguagem de mais prestígio por termos ‘non-U’ e a adoção de sotaques regionais podem ser consideradas consequências infaustas do desconhecimento por parte desses estrangeiros dos estereótipos associados a essas formas de linguagem por muitas pessoas na Inglaterra.

Saber é poder
Os estereótipos sociológicos associados a cada padrão de linguagem são uma faceta tipicamente britânica. Esses estereótipos tendem a enfraquecer com o passar do tempo, mas no momento eles ainda existem e em alguns casos são levados muito a sério. Estar ciente disso é importante para nós estrangeiros residentes na Inglaterra, pois, como diz o ditado, saber é poder.



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