sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Diga-me como falas e te direi quem és – Linguagem e estereótipos sociais na Inglaterra


Na Inglaterra alguns pais têm razões adicionais para monitorar o desenvolvimento linguístico de seus filhos, especialmente no que diz respeito a pronúncia e escolha de vocabulário. Aqui, a maneira como um indivíduo fala inglês pode ter repercussão na sua vida social e profissional. Parafraseando Shakespeare, mais mistérios nos mecanismos de funcionamento da sociedade inglesa do que supõe a nossa vã filosofia de vida brasileira.


No seu livro Accents of English 1. An Introduction, o professor J.C. Wells, da University College London, nota que na Grã-Bretanha as pessoas inconscientemente tiram conclusões quanto à classe social de um indivíduo com base em seu vocabulário e sua pronúncia. O fator linguagem tem um papel predominante, e sotaques regionais são considerados característicos de classes sociais mais baixas.

Uma pesquisa mencionada no livro de J.C. Wells ilustra as associações feitas à linguagem. A seguinte pergunta foi feita a membros do público: Quais destes [11 fatores específicos] é o mais importante para identificar a classe social de um indivíduo? O fator mais votado foi ‘A maneira como ele fala’ seguido de ‘Onde ele mora’. O fator menos votado foi ‘A quantidade de dinheiro que ele tem’. A grande maioria dos participantes da pesquisa via a linguagem como um melhor indicador de classe social do que a profissão, a educação ou a renda.

Received pronunciation
A forma de pronúncia de maior prestígio na Inglaterra é a chamada Received Pronunciation (RP), ou pronúncia recebida (conhecida no Brasil como ‘inglês da rainha’), que surgiu originalmente nas escolas secundárias e universidades de elite, como Eton, Harrow, Oxford e Cambridge, nos séculos 18 e 19, e indicava que o interlocutor tinha tido uma boa educação. Received Pronunciation ganhou prominência de 1920 em diante devido a uma decisão do BBC Advisory Committee on Spoken English de que ela deveria se tornar a pronúncia padrão de apresentadores da BBC, o que foi o caso por mais de 50 anos.

Received Pronunciation acabou se tornando um símbolo de status social, boa educação e um modelo a ser seguido por pessoas com ambições de ascensão social. A pronúncia pode ser encontrada em qualquer parte do país - sotaques regionais normalmente indicam de que lugar uma pessoa vem, mas RP indica o nível social e cultural do indivíduo! RP não é um sotaque e sim a ausência de sotaques regionais, representando, segundo alguns, a forma ‘correta’ de falar inglês.

Durante as últimas décadas houve uma certa democratização dos sotaques regionais e a posição de prestígio do RP diminuiu um pouco, mas a obsessão dos ingleses por classe social e linguagem continua. Received Pronunciation ainda é o padrão da família real inglesa, do Parlamento, da Igreja da Inglaterra, das cortes de justiça e outras instituições nacionais. No entanto, segundo algumas fontes, menos de 3% da população usa uma forma pura de RP. Muitas pessoas com bom nível de educação desenvolveram o chamado RP modificado, que incorpora várias características regionais. Mesmo assim, RP, que é a pronúncia ensinada para estrangeiros que aprendem inglês britânico, continua tendo altíssimo status.  

Linguagem e classe social
Até hoje a estrutura social do Reino Unido é baseada na noção de classes sociais, em geral ligadas a berço, profissão, riqueza e educação. A percepção geral é que o vocabulário, a pronúncia e o estilo de escrita de um indivíduo são indicadores confiáveis de sua classe social.

Em geral, divide-se a sociedade inglesa em 3 classes: upper, middle (subdividida em upper, middle e lower), e working class. Abaixo, um sumário dos estereótipos linguístico relacionados a cada classe.

A pronúncia da chamada upper class é o RP. Num artigo publicado nos anos 50, Alan Ross, professor de linguística da Universidade de Birmingham, cunhou os termos ‘U English’ e ‘non-U English’ (U de upper class), algo como inglês aristocrático e inglês não aristocrático. Apesar do artigo tratar também de pronúncia e estilo de escrita, foi a diferença de vocabulário que chamou a atenção do público:


U English                                                       Non-U English

BIKE ou BICYCLE                                   CYCLE
DINNER JACKET                                     DRESS SUIT
TO HAVE ONE’S BATH                             TO TAKE A BATH
ICE                                                     ICE CREAM
SCENT                                                 PERFUME
THEY'VE A VERY NICE HOUSE                   THEY’VE A LOVELY HOME
ILL                                                      SICK (doente)
SICK                                                    ILL (enjoado)
LOOKING-GLASS                                    MIRROR
CHIMNEYPIECE                                      FIREPLACE
GRAVEYARD                                          CEMETERY
SPECTACLES                                         GLASSES
FALSE TEETH                                        DENTURES
TO DIE                                                TO PASS ON
MAD                                                    MENTAL
JAM                                                    PRESERVE
NAPKIN                                                SERVIETTE  (talvez a palavra mais conhecida como indicadora de classe da língua inglesa)
SOFA                                                  SETTEE ou COUCH
LAVATORY ou LOO                                 TOILET
RICH                                                   WEALTHY
SORRY?                                               PARDON?
GOOD HEALTH                                       CHEERS
LUNCH                                                 DINNER (para almoço)
Os falantes de U English comem lunch no meio do dia (luncheon é U antigo) e dinner à noite; falantes de Non-U comem dinner no meio do dia. Evening meal é non-U.
VEGETABLES                                         GREENS
PUDDING                                              SWEET
DRAWING-ROOM                                    LOUNGE
WRITING-PAPER                                    NOTE-PAPER
HOW D'YOU DO?                                    PLEASED TO MEET YOU
MASTER, MISTRESS                               TEACHER

Abaixo da upper class estão as ‘middle classes’. A pronúncia da upper middle class também é o RP. Um degrau abaixo está a middle middle class, cujos membros podem ter leves sotaques regionais, RP ou uma mistura. A seguir vem a lower middle class, composta predominantemente de pessoas com sotaques regionais não muito acentuados, mas com vocabulário característico.

Finalmente, os membros da working class falam com sotaques regionais acentuados e vocabulário característico.


Discriminação
A história contada a seguir pode parecer inacreditável para brasileiros, totalmente alheios a este tipo de discriminação. Há dois anos um amigo meu (que não é inglês) estava selecionando uma secretária para trabalhar para ele no escritório de uma multinacional em Londres. Ele convidou uma das candidatas, que parecia ser super bem qualificada para o cargo, para uma entrevista, da qual também participaria a gerente de recursos humanos da empresa, uma inglesa da gema. Após a entrevista, que meu amigo achou que tinha ido muito bem, a gerente de recursos humanos veio lhe dizer que ela via um seríssimo problema na candidata: ela tinha sotaque de uma certa região da Inglaterra, e se meu amigo a contratasse iria provavelmete haver uma repercussão negativa para ele pessoalmente e para a empresa! Para sorte da candidata, meu amigo não tinha o mesmo tipo de preconceito, e a contratou.

Escola como rótulo
Uma outra coisa curiosa é que na Inglaterra a escola onde a pessoa estudou muitas vezes é mais importante que o grau obtido, pois, juntamente com a linguagem, é um indicador confiável de classe social. Portanto, há também uma tendência de se rotular uma pessoa de acordo com a escola frequentada por ela (principalmente a secundária), onde, entre outras coisas, sem dúvida muitos de seus hábitos linguísticos foram formados.

De RP para cockney num piscar de olhos
O caso da filha de uma amiga brasileira que mora na Inglaterra é muito interessante dentro deste contexto. A menina aprendeu inglês na escola, pois em casa a família fala apenas português. Nos primeiros três anos ela frequentou uma escola particular num subúrbio de Londres, onde aprendeu a falar um inglês muito próximo de Received Pronunciation. No entanto, ao final do terceiro ano minha amiga resolveu colocar a filha numa escola pública, no mesmo subúrbio, mas que era frequentada principalmente por crianças de famílias ‘lower middle class’ e ‘working class’.

A rapidez com que a pronúncia da menina mudou a partir do momento que ela entrou na nova escola foi algo impressionante. Ela passou a falar com um sotaque característico da região leste/sudeste de Londres, conhecido como cockney, que tem baixo status social.  Ela começou a internalizar o som ‘t’ intervocálico, deixou de pronunciar o ‘h’ no início de palavras e começou a pronunciar ‘th’ como se fosse ‘f’ ou ‘v’. Abaixo alguns exemplos:
Waterloo = Wa’erloo 
City = Ci’y 
A drink of water = A drin'a wa'er 
A little bit of bread with a bit of butter on it = A li'le bi' of brea wiv a bi' of bu'er on i'
house = ‘ouse
hammer = ‘ammer
thin = fin 
brother = bruvver 
three = free 
bath = barf 

Desaprendendo a falar o inglês da rainha
Um outro fato interessante é que muitos estrangeiros desavisados chegam na Inglaterra falando um inglês se não fluente, pelo menos baseado em RP, e ao terem contato com pessoas que usam uma forma de linguagem de menor prestígio (que os estrangeiros não identificam como tal), assumem que a mesma é a ‘verdadeira’ língua inglesa, acabam adotando um vocabulário e uma pronúncia de baixo status social, que os sujeitam a discriminação conforme explicado acima. A substituição de palavras associadas a uma linguagem de mais prestígio por termos ‘non-U’ e a adoção de sotaques regionais podem ser consideradas consequências infaustas do desconhecimento por parte desses estrangeiros dos estereótipos associados a essas formas de linguagem por muitas pessoas na Inglaterra.

Saber é poder
Os estereótipos sociológicos associados a cada padrão de linguagem são uma faceta tipicamente britânica. Esses estereótipos tendem a enfraquecer com o passar do tempo, mas no momento eles ainda existem e em alguns casos são levados muito a sério. Estar ciente disso é importante para nós estrangeiros residentes na Inglaterra, pois, como diz o ditado, saber é poder.



Copyright © Claudia Storvik, 2011. All rights reserved.

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5 comentários:

Paula Duailibi Homor disse...

Claudia,

Esse post não poderia ser mais apropriado.
Quando trabalhei em um dos mais tradicionais escritorios de advocacia de Londres, meus colegas advogados me explicaram isso. A escola que vc frequenta vai determinar o seu sotaque. Isso representa sua classe social e, mesmo que vc tenha sido um algum otimo em uma universidade de prestigio, na hora de procurar emprego, firmas tradicionais nao vao contratar pessoas com sotaque de "plebe". Isso é fato. Preconceito, mas é assim que funciona.

Claudia Storvik disse...

Obrigada pelo comentario, Paula. Como voce pode imaginar, aqui na Inglaterra a concorrencia nos processos de selecao das melhores escolas e ferrenha, pois a percepcao de muitos dos pais e que se seus filhos nao forem para a escola ‘certa’ vai ser dificil recuperar o prejuizo la na frente. Apesar de todo o esforco do governo para dar acesso a profissoes de prestigio a jovens das classes mais baixas, o preconceito esta vivo e as coisas continuam funcinando assim. Tenho contato profissional com varias firmas que nao so nao contratam gente com sotaque de ‘plebe’, mas onde todo o top management vem da mesma escola de elite, como por exemplo Harrow. Coincidencia? Da um outro post. Um abraco, Claudia

Dayane disse...

Olá Claudia!
Achei seu blog por acaso e estou fascinada. Sou brasileira casada com americano e moro nos EUA, tenho uma filhinha de 6 meses e quero muito que ela aprenda as duas línguas e pra isso estou procurando conhecer a melhor forma de ensiná-la. Parabéns pelo blog e por disponibilizar tanta informação bacana que com certeza ajuda muitas mães como eu. Obrigada por compartinhar esse espaço tão rico em informações.
Dayane

Claudia Storvik disse...

Ola, Dayane. Obrigada pelos comentarios. Fico muito feliz que tenha achado o blog util e espero que volte sempre. Um abraco, Claudia

Rena disse...

Oi Claudia, adorei seu blog! Há pouco tempo li " Watching the English" , da Kate Fox, e fiquei por dentro da questão das classes sociais aqui. Os meus filhos, apesar de estudarem em escolas do governo, têm o sotaque de Kensington & Chelsea, onde moramos. Vários amigos brasileiros vieram me falar como eles falam "properly" ! Muito curioso...

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