segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Autora convidada: Madalena Cruz-Ferreira

No post ‘Devemos usar apenas uma língua com crianças que apresentam atraso no desenvolvimento da fala?’ recomendo a leitura de um artigo escrito pela especialista Madalena Cruz-Ferreira, PhD em Linguística e Fonética pela Universidade de Manchester.

Após a publicação desse post tive a enorme honra de ser contatada por Madalena, que é portuguesa, e de ter ‘Filhos Bilíngues’ adicionado à lista de leitura do seu blog, ‘Being Multilingual. Madalena se dedica ao multilinguismo, adulto e infantil, há mais de 35 anos. É casada com um sueco, vive em Singapura, e é mãe de três filhos trilíngues. É autora de muitos livros de sucesso sobre multilinguismo, inclusive um especificamente sobre aquisição da língua portuguesa 

Sou fã de carteirinha de Madalena há muito tempo, mas nunca havia lido um livro ou artigo sobre multilinguismo escrito por ela em português. Para minha grande alegria, e para o enorme benefício dos leitores, Madalena gentilmente aceitou meu convite para escrever um artigo em nossa querida língua materna para publicação em ‘Filhos Bilíngues’. O excelente texto segue abaixo. Aproveitem, pois ter a oportunidade de ler algo sobre o tema escrito em português por uma especialista de nível internacional é coisa rara. 


Preocupações multilíngues – ou talvez não

Madalena Cruz-Ferreira

Muitas das perguntas que recebo de pais e educadores recém-chegados ao multilingualismo refletem as preocupações que eu própria tive, como mãe novata dos primeiros meninos multilíngues na minha família e na do meu marido. Por exemplo: Que língua(s) devo usar com os meus filhos, e como? (Resposta: a língua ou as línguas que sejam naturais para si, como forem naturais para si.) Usar várias línguas com uma criança pode afetar, ou atrasar, o seu desenvolvimento linguístico e cognitivo? (Resposta, bem concisa: Não.)

Outras perguntas têm a ver com aquisição da linguagem, isto é, com o desenvolvimento típico de qualquer criança independentemente do número de línguas usadas na família ou na comunidade. Por exemplo: A minha filha começou a tentar juntar palavras para dizer frases e começou a gaguejar, será por nós falarmos duas línguas com ela? (Resposta: construir frases fluentes implica muita ginástica de músculos ligados à fala, e muita ginástica intelectual. Coordenar tudo isso requer treino, e treino prolongado. Meninos monolingues também gaguejam nesta fase de aprendizagem, e todos os meninos também tropeçam e caem quando aprendem a andar e querem correr.) 

Todas as perguntas, no entanto, refletem um sentimento de diferença, e principalmente de exceção: nós, multilíngues, somos diferentes deles, monolingues, e eles são a norma. O que resulta em pensar que meninos multilíngues fazem ou não fazem certas coisas porque são multilíngues. Eu gosto sempre de questionar perguntas, para ver se elas têm razão de ser, e uma questão é certa: a convicção de que o multilingualismo causa, ou afeta, ou piora, ou melhora, ou tem alguma coisa a ver com o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento geral infantil é apenas isso, uma convicção. Não existe fundamento científico para afirmar que uma quantidade, número de línguas, tenha influência numa qualidade, aquisição da linguagem.

O motivo da arbitrariedade de afirmações deste tipo é simples: ser multilíngue, ou monolingue, não é mais nem menos “normal” do que o inverso, porque desde sempre os seres humanos usaram uma ou mais línguas. As línguas, e o número de línguas de que necessitamos, são instrumentos que nos identificam com a comunidade em que nascemos e vivemos, e que servem os nossos objetivos e as nossas práticas culturais. O multilingualismo não é recente nem estranho: o que é recente e estranho é a convicção de que ele é recente e estranho. Fala-se de CLD children (culturally and linguistically diverse children) ‘meninos culturalmente e linguisticamente diversos’, como se meninos monolingues fossem culturalmente e linguisticamente homogéneos; e fala-se de meninos que usam heritage languages, ‘línguas de herança’, como se meninos monolingues não tivessem herança linguística. Os multilíngues não são responsáveis pelos termos que pesquisadores e falantes monolingues gostam de colar neles, e que não têm significado real.

Penso que será bom mudarmos as nossas convicções. Primeiro, porque elas não refletem os factos; e segundo, porque as preocupações que derivam delas se entranham no nosso contato com os nossos meninos, e podem vir a afetá-los a eles também: eles vão crescer pensando que são “diferentes”, sem entender bem como nem porquê. Isto é tanto mais irrelevante que ser multilíngue é de facto a regra. Existe mais gente no mundo que usa mais de uma língua no dia a dia do que gente que usa uma só língua. Não faz sentido caracterizar uma maioria como especial ou como exceção, e não faz sentido querer observar multilíngues com olhos de monolingue – por que não o inverso, nesse caso? Um monolingue também parece bem estranho, visto com olhos de multilíngue. Não é difícil encontrar diferenças e estranhezas: basta querer encontrá-las, porque somos todos diferentes. Por isso eu acho que é mais interessante procurar o que temos em comum: todos nós usamos o repertório linguístico que temos, uma língua ou mais, de acordo com o que é relevante na nossa vida.

Para voltar a perguntas frequentes que recebo, e cujas respostas se ligam a típicos comportamentos multilíngues, os multilíngues usam cada uma das suas línguas de forma diferente, porque é para isso que precisam de línguas diferentes. Isto significa que cada língua naturalmente se desenvolve de forma diferente também: uma para falar com a mãe, outra com o pai, outra com os professores e amigos na escola, ou entre irmãos – é isto mesmo que se passa na minha família, por exemplo. E as chamadas “misturas de línguas” são típicas tanto do multilingualismo como do monolingualismo. Quando falamos de robôs, ou de tufões, ou da internet, estamos a misturar línguas. Estas palavras não são portuguesas, e só ficaram portuguesas porque falantes do português assim decidiram, pela força do uso, e necessariamente por primeiro uso de um multilíngue, que as conhecia de outra língua. São as convenções humanas que fazem os usos: as palavras não pertencem às línguas, pertencem às pessoas que as usam. Uma criança que diz Quero o meu teddy-bear! está a fazer o mesmo, usando as palavras que achou úteis na sua experiência linguística total, para exprimir o que é importante para ela.

Este último exemplo ressalta uma nota final que queria deixar aqui: muitas vezes notamos o que os nossos meninos multilíngues não fazem, e descuramos aquilo que eles fazem. Usar palavras de línguas diferentes significa usar línguas diferentes, e assim fazer o que todos os multilíngues fazem. Meninos, tal como todos nós, aprendem fazendo.


***

Mais informações sobre o trabalho de Madalena Cruz-Ferreira e sobre como entrar em contato com ela podem ser encontradas no seu blog ou em sua página acadêmica, ‘Being Multilingual’.


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8 comentários:

Momi disse...

Puxa, que legal um texto da Madalena em Portugues. Adorei! Bjs

Madalena Cruz-Ferreira disse...

Adorei escrever, Momi, obrigada!
E obrigada à Cláudia por querer ter um post meu. Falar destas coisas em línguas diferentes faz a gente pensar de maneiras diferentes, e aprender com isso.
Madalena

Ana L disse...

Oi Madalena. Parabens pelo artigo. Voce escreveu: Que língua(s) devo usar com os meus filhos, e como? (Resposta: a língua ou as línguas que sejam naturais para si, como forem naturais para si.) Falo so portugues com meu filho mas nao sei que lingua usar quando estamos com pessoas que falam so ingles, porque as pessoas podem nao gostar se eu falar com meu filho numa lingua que eles nao entendem. O que devo fazer? Se eu falar ingles nao vai atrapalhar o bilinguismo dele? Ana

Madalena Cruz-Ferreira disse...

Olá Ana, tive exatamente o mesmo problema, obrigada por esta pergunta. Família e amigos de outras línguas olhavam assim de lado para nós quando eu falava português com os meus filhos. Dá a impressão que as pessoas pensam que escolhemos uma língua secreta de propósito para falar delas, não dá?? Quando o que estamos a fazer é o mesmo que quaisquer outros pais, usar a nossa língua com os nossos meninos para lhes dizer coisas desinteressantes como “tira o dedo do nariz!” ou “queres mais frutinha?” ...!

Há duas opções aqui. Uma é explicar isto mesmo às pessoas que não falam português, e pedir compreensão: se elas têm filhos, também falam a sua língua com eles, e falam das mesmas coisas com eles. Pode também fazer uns sorrisos, como eu fazia, e traduzir para elas o que os meninos e nós vamos dizendo. Ao fim de cinco minutos as pessoas deixam de prestar atenção a tanta normalidade sem graça.

A outra opção é falar com os meninos a língua dessas pessoas, e explicar porquê aos meninos. No início, os meus filhos pequenos achavam muito estranho eu mudar de língua com eles, mesmo entendendo que outras pessoas não percebem português. Mais tarde começaram eles próprios a pedir-me que mudasse de língua, por exemplo quando tinham em casa amiguinhos que falavam só sueco ou só inglês.

Falar mais de uma língua com os nossos filhos não tem qualquer problema. O que é confuso para os meninos (e para todos nós!) é não entender porque se fazem as coisas desta ou daquela maneira. Se optar por mudar de língua, a nova regra para o seu filho é: português como sempre, inglês com pessoas que só falam inglês. Veja este post meu, One person, one ___, sobre os mitos acerca de usar mais de uma língua com os nossos filhos.

Espero que isto faça sentido para si!

Madalena

Regi Friedman disse...

Nossa, esse post me fez pensar sobre bilinguismo de uma maneira super filosofica. Parabens aa autora.

Madalena Cruz-Ferreira disse...

Regi, fico muito contente por saber isso. De há uns 100 anos para cá, tem-se dito tanta coisa estranha e contraditória acerca do multilingualismo, que nos faz mesmo pensar!
Madalena

Ana L disse...

Madalena, MUITO OBRIGADA pela sua resposta! Um gande beijo! Ana

Edilaine de Aguiar disse...

Madalena,
Obrigada por esse artigo muito interessante!!! Parace que pouco a pouco esse tema está deixando de ser "tabu"!! Moro em Barcelona, na Espanha, e aqui faço parte de uma associação de pais brasileiros que se formou justamente pela preocupação que os pais tinham de transmitir sua língua e cultura aos filhos. E me sinto identificada totalmente nesse artigo... Um grande abraço!

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